sábado, 26 de junho de 2021

maria madalena contempla jesus morto

 

(Eugène Delacroix - Saint Mary Magdalene at the Foot of the Cross) 


consagrei no teu corpo um pacto de pranto tolo,

o pranto que se faz força e grita uma canção.

contemplei os teus olhos cerrados, e me forcei a alçá-los

ainda que a manhã não me tivesse trazido a aurora

de outro dia.

calei no meu tato as páginas que escreveria sôfrego

e generoso, ávido, e elegi meu toque

à categoria linguística.

eu te observo agora, deitado sobre meu solo

e ouço um ecoar de desolação nestes horizontes desérticos

que se abrem agora. igualmente agora,

eu vi a piedade, a dor, a súplica e o silêncio;

meus olhos estão gastos.

o ar sopra e sopra agora, e sopra para além do agora,

e perpetua um sopro de pó.

a sua cabeça pende de meu braço e, se fosses joão batista,

ela rolaria para além de meus campos.

ah, e se tua voz se fizesse ouvir agora? e se eu tivesse

o teu verbo, qual seria?

o verbo se fez ausente; para além do quietar, do branco ou

de toda meditação possível,

a vida impôs-se em sua própria ausência.

eu verteria um pouco mais de pranto,

se ele não me soasse salgado do mar que minh’alma secou,

se o sal não afundasse nas fendas de meu rosto erodido

e gerasse outras dunas.

e o ventre mãe outrora retumba um surdo desfiar;

a memória é uma roca

e o tempo um tecelão.

fia, maldito, fia.




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