segunda-feira, 29 de novembro de 2021

OPIUM

 

(Marianne von Werefkin  - 1860–1938)


Tenho em meus pés o dom de minhas memórias, memórias que cheiram forte

e que tem calos e feridas

Aberta, além de cicatrizes.

Tenho neles todas as minhas andanças, tudo o que vi ou tudo o que viram por mim;

Lembro muito de Opium; era uma cidadela pequena, algumas mulheres nas igrejas

E nas janelas, um cheiro forte de feijão cozinhando na lenha.

Opium é um campo devassado, uma linha de horizonte no infinito das coisas

De onde objetos sobem e descem, onde à luz sucede-se o sonho e os fatos

(Que afinal, não são tão diferentes assim.)

Vi o homem que seguiu o Sol, paciente e lento, em sua jornada ao crepúsculo,

E o rodopiar alucinado da noite que o seguia.

Ele não se cansava; dia após dia, observava este movimento contínuo;

Somente em certas noites muito especiais ele descansava.

Aos poucos eu fui compreendendo sua paciência; sem que nada me dissesse,

Percebi que ele buscava, em cada dia, em cada noite, uma única diferença,

Um único pedaço ou partícula que diferenciasse os dias e noites de outros

Dias e outras noites. Minuciosamente polia suas retinas e, silencioso, observava

Cada movimento do sol em direção ao alto, cada raio de luz que chegava até ele,

As gotas de orvalho sobre as copas das árvores; tudo observava e analisava

Num trabalho arqueológico, mas nada conseguiu.

Pela primeira vez, sentou-se. A própria treva permaneceu indecisa mas, vendo-o

Sentado, imaginou que se tratava de mais uma suscetibilidade dos homens, e pôs-se

A rodopiar ao brilho da primeira luz da noite – não uma estrela, mas sim o lampião

Que sempre carregava consigo.

Era como se sentisse com ele seu peso, sua sensação de angústia, uma enguia

Agitando-se no baixo ventre. Tudo era tremendamente claro e simples: um pouco

De cada vez, sempre, irregular. Não mais se importava em perder a única coisa

Que talvez tivesse; noite após noite, até durante alguns dias, ia saindo de mansinho,

Devagar. Pouco a pouco fui deixando-o e, no último momento – o derradeiro – tinha

Uma violeta enrolada num pedaço de sua própria pele. Quando o deixei, seus olhos,

Apesar de úmidos, eram dois livros sem página, ocos, vagos.

Era outono; folhas começaram a cobrir-lhe as pernas e o peito

Enquanto eu contemplava, sentado numa beira de vidraça provençal,

As duas esferas de fumê que se aqueciam à luz desta noite de outono.


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